Por Bruno Raphael da Cunha Dobicz - Graduando do 2º ano em Filosofia pela PUCPR
A inquietação humana em buscar respostas aos questionamentos
que fogem à simples constatação dos sentidos impulsionou diversos pensadores a
discorrer sobre temas de grande repercussão. Assim ocorre acerca do livre arbítrio.
Desde a antiguidade grega, a temática, que inclui a liberdade, é abordada
filosoficamente em reflexões, as quais influenciam a consideração dos homens de
todas as épocas.
Seguindo as noções da filosofia cristã, este tema é
abordado tanto pelos Padres patrísticos como escolásticos. Já nas obras de
Orígenes é possível observar reflexões sobre o livre arbítrio. Encontra-se algo
semelhante principalmente nas obras de Nemésio de Emesa, Boécio, São Bernardo
de Claraval e São Tomás de Aquino. Contudo, é nas palavras de Santo Agostinho
que a abordagem é memorada. Dentre suas duzentas e trinta e duas obras, em “De libero arbitrio” (O Livre-Arbítrio) o
insigne filósofo imprime uma importante consideração sobre o bem e o mal; a
prova da existência de Deus; o auxílio da graça divina; e a liberdade do homem
em agir segundo as paixões ou ponderar suas ações visando os bens eternos.
Seguindo os passos de Santo Agostinho, é possível
compreender seu pensamento em relação ao agir do homem, o qual tem a liberdade
em optar entre proceder retamente ou não. Afinal, o homem tem consciência de
determinar a si mesmo e de ser responsável por seus atos.
Para ele, a alma humana é dotada de razão e vontade,
sendo estes os fatores que a distingue dos animais. O homem, portanto, graças a
sua racionalidade, pode definir suas ações, condicionando sua vontade a um agir
moral. Todavia, o mal ou o bem são condicionados às disposições do espírito,
podendo tender às virtudes ou aos vícios.
Neste plano inicia-se a discussão que perpassa toda a
obra: se tudo provém de Deus, que é Bem, de onde provém o mal?
A posição de Agostinho é sumamente clara em afirmar
que Deus não é autor do pecado – mal – mas sendo este derivado da inconstante e
fraca conduta humana, que se submete aos ditames das paixões, acarretando,
conseqüentemente, no afastamento de Deus.
Sua posição é uma contraposição aos erros
maniqueístas, que afirmavam ser o mal uma substância. Inspirado por Plotino,
Agostinho resolve a questão defendendo que o mal não é substância, mas uma
lacuna, um defeito, ou melhor, ausência de algo que deveria estar presente: ou
seja, o bem. Portanto, o mal não é um ser, mas deficiência e privação de ser.
Entende-se a deficiência do ser em relação às
imperfeições encontradas no homem que, embora criado por Deus, aquele é
infinitamente inferior à seu criador, sendo deficiente ontologicamente, devido
às inclinações da vontade e mau uso da liberdade. Ademais, é o mal privação de
ser, pois o homem, devido ao pecado original, é privado da participação e
plenitude do Bem – Ser no qual não há mal algum.
Escreve Santo Agostinho:
“E o mal, cuja origem eu buscava, não é uma
substância, porque, se fosse uma substância, seria um bem. E, na verdade, seria
uma substância incorruptível e, por isso, sem dúvida um grande bem ou seria uma
substância corruptível e, por isso, um bem que, de outra forma, não poderia
estar sujeito à corrupção. Por isso, vi claramente como tu fizeste boas todas
as coisas” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 455).
O ilustre Bispo de Hipona divide o mal em três níveis,
a saber: metafísico-ontológico; moral; e físico.
“Do ponto de vista metafísico-ontológico, não existe
mal no cosmos, mas apenas graus inferiores de ser, em relação à Deus, graus
esses que dependem da finitude do ser criado e dos diferentes níveis dessa
finitude” (AGOSTINHO, 1995, p. 16). Mesmo aquilo que possa parecer defeito, na
ótica universal, desaparece, pois todas as coisas estão articuladas em um
incompreensível conjunto harmônico. Ou seja, não há mal no universo, pois este
é perfeito e ordenado.
Quanto ao mal moral, este constitui o pecado, que
depende da má vontade humana. Em princípio, deveria a vontade tender para o Bem
supremo, mas, como existem muitos bens criados e finitos, a vontade pode tender
para eles, preferindo à criatura ao invés de Deus. Ou seja, escolhe os bens
inferiores em destarte dos bens superiores. “Sendo assim, o mal deriva do fato
de que não há um único bem, e sim muitos bens, consistindo precisamente o
pecado na escolha incorreta entre esses bens. [...] O fato de ser recebido de
Deus uma vontade livre é para nós grande bem. O mal é mau uso desse grande bem”
(AGOSTINHO, 1995, p. 16).
Já o mal físico, compreendido como padecimentos do
corpo e da matéria – doenças, sofrimentos e morte – é conseqüência do pecado
original, conseqüência do mal moral.
Em suma, Deus não é autor do pecado, tendo este origem
no próprio homem, quando submete sua vontade às paixões desordenadas, que
decorre da imperfeição de sua natureza. Exprime, portanto, que o homem é livre
para fazer o bem, não sendo forçado a cometer o mal. Assim, “a vontade que opta
pelo mal, torna-se má; a que escolhe o bem, torna-se boa” (BOEHNER; GILSON,
2010, p. 191).
Outro ponto a ser considerado é que o poder da vontade
para optar livremente entre o bem e o mal se baseia na sua aptidão para
participar da felicidade, pois sendo o homem livre e utilizando sua liberdade
na prática do bem, torna-se feliz. Ao contrário, agindo conforme as inclinações
das paixões, mesmo gozando do prazer terrestre, o homem não encontra a
felicidade, pois esta está contida somente no bem, cuja procedência é o sumo
Bem.
Segundo Santo Agostinho, “sabemos que o nosso destino
é a participação na felicidade, o que pressupõe a presença, em nós, de uma
vontade capaz de tomar posse desta felicidade”[1].
Contudo, a vontade pode regozijar-se egoisticamente seu próprio bem “ao invés
de buscar a felicidade no bem incomutável e comum a todos: e nisto consiste o
pecado”[2].
Continua Santo Agostinho:
“É o que sucede quando a vontade aspira a
governar-se por si mesma, ou quando procura conhecer o que não é de sua conta,
ou ainda, quando sucumbe aos apetites da carne. E assim, pela soberba, a vã
curiosidade e o vício, o homem se exclui a si mesmo da verdadeira vida,
passando a levar uma vida de morte. Este castigo é justo, visto tratar-se
também aqui, de efeitos da vontade.
Com se vê, a liberdade para o bem, que
inclui, como reverso, a liberdade para o mal, radica, em última análise, na
possibilidade da felicidade”[3].
A felicidade, como discorre Agostinho, provém da
escolha e da prática do bem. Todavia, tais atos somente podem ser efetivados
mediante o auxílio da graça divina, pois após a queda do pecado original, a
humanidade tornou-se necessitada da graça divina. Afinal, “quando o homem
procura viver retamente valendo-se unicamente de suas próprias forças, sem
ajuda da graça divina libertadora, então ele é vencido pelo pecado; mas o homem
tem o poder de crer em sua livre vontade e no seu libertador, acolhendo a
graça” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 457).
São necessárias duas condições para
a prática do bem, segundo Etienne Gilson: um dom de Deus, que é a graça, e o
livre arbítrio. Segundo ele, sem o livre arbítrio, não haveria problemas; sem a
graça, o livre arbítrio não iria querer o bem ou, se o quisesse, não poderia
realizá-lo, pois o pecado original afasta o homem de Deus. A graça, desta
forma, não tem o efeito de suprir a vontade, mas sim de torná-la boa. (GILSON,
1929, p. 202).
De acordo com o pesquisador, a possibilidade de fazer
o mal é inseparável do livre arbítrio, mas o poder de não fazê-lo é marca da
liberdade. Ademais, encontrar-se confirmado na graça a ponto de não poder mais
fazer o mal é o grau supremo da liberdade. (GILSON, 1929, p. 202).
Por fim, todas as considerações realizadas por Santo
Agostinho acerca do livre arbítrio influenciaram decisivamente a conduta do
homem, principalmente o homem ocidental. É em seu pensamento que muitos outros
pensadores se apoiaram e, graças à sua genialidade, o assunto continua vivo e
feito tema de discussões.
[1] De lib. arb. 2, 19, 52; 1268 apud BOEHNER, Philoteus; GILSON, Etienne. História
da Filosofia Cristã. 10. ed.
Petrópolis: 2007. p. 191).
[2] Ibid.; 1269 apud BOEHNER,
Philoteus; GILSON, Etienne. História da
Filosofia Cristã. 10. ed. Petrópolis: 2007.
p. 192.
[3] Ibid. 53; 1269 apud BOEHNER, Philoteus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. 10. ed.
Petrópolis: 2007. p. 192.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, Santo. O
Livre-Arbítrio. Tradução e introdução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulus, 1995.
BOEHNER, Philotheus. GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. 10. ed. Vozes: Petrópolis, 2007.
GILSON, Etienne. Introduction à l’étude de saint Augustin.
2. ed. Paris:___, 1929.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História
da Filosofia. Antiguidade e Idade Média. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1990.
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