17 de setembro de 2012

Setembro, mês da bíblia: a Palavra de Deus e a espiritualidade da Igreja




  1. COLOCAR-SE EM ESCUTA

O ser humano, ao vir ao mundo após a gestação materna, experimenta conjuntamente com outros sentidos a audição. Esta “nova” modalidade sensitiva para o recém-nascido possibilita-lhe uma nova abordagem para seu relacionamento, uma nova forma de descoberta e aprendizado. Fica atento a todas as coisas postas ao seu redor. Familiariza-se com elas, com a voz dos pais, irmãos e com os sons emitidos pelos mais diversificados meios.
Assim também os cristãos, quando “iniciam” a experiência da escuta interior, buscam familiarizar-se com a voz de Deus, que fala incessantemente aos corações que se colocam a ouvi-lo. Procuram, em todas as coisas criadas, ouvir e compreender a voz do Criador, cujo Verbo – princípio e fim – encarnou-se para renovar a Aliança, cumprir a vontade do Pai e revelar-nos plenamente as Escrituras.
A Igreja, Esposa e Corpo Místico de Cristo, comunica ao mundo a Palavra do Deus Trinitário, seu dileto Esposo. Durante séculos anuncia, quão Esposa fiel, a Boa Nova, a Salvação e a sua Vontade. E todos seus filhos, atentos aos dizeres da Mãe, colocam-se em atitude de escuta, levando-os a praticar os ensinamentos aprendidos.
Aprouve a Deus revelar-se aos profetas, portadores do anúncio da renovação da Aliança e, perfeitamente, em Jesus Cristo, cuja Palavra contém toda a origem, todo o sentido, toda a unidade e a plenitude da Vida.
Desta forma, junto com Simão Pedro perguntamos: “A quem iremos, Senhor? Só Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus (Jo 6, 68-69)”.
Nesta Palavra, tão antiga e tão nova, é revelada a vontade do Pai. Assim, o Concílio Vaticano II, ao expressar a Revelação Divina, declara:

“Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu Filho (Heb. 1, 1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cfr. Jo. 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado ‘como homem para os homens’, ‘fala, portanto, as palavras de Deus’ (Jo. 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cfr. Jo. 5,36; 17,4).”[1]

Na Revelação “quis Deus manifestar e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos da Sua vontade a respeito da salvação dos homens, para os fazer participar dos bens divinos, que superam absolutamente a capacidade da inteligência humana”.[2]
Portanto, juntamente com o Magistério e a Tradição, nas Sagradas Escrituras encontramos o próprio Deus vivo, que nos alimenta e orienta por meio de sua Palavra.
Paralelamente à escuta, o coração tocado pelas belezas do Criador eleva um suspiro de alento, uma prece de graça e um louvor de dignidade, para honrar todos os mistérios contidos nas Escrituras.
A palavra é constituinte fundamental do diálogo. Portanto, aquele que ouve é volvido à comunicar e dialogar, primeiramente com o Pai. É voltado ao estado da oração, cujo colóquio é estabelecido com Aquele que diz: “Pedi e dar-se-vos-á” (Mt 7, 7). Ademais, é chamado a compreender a realidade com a visão divina, iluminada pelas verdades da fé e, vivenciando-as, ser luz e sal no mundo.
Sucintamente, a oração é o modo em que entramos em diálogo íntimo com o Pai. Em sua Palavra, buscamos conhece-lo; e quanto mais se conhece, maior é o desejo de conhecer.
A Igreja oferece, dentre outros meios, a Leitura Orante da Palavra – Lectio Divina – como subsídio e caminho para estar em contato com a realidade Transcendente e chegar ao conhecimento da vontade de Deus. É uma fonte que exaure as mais preciosas graças, restaura e fortifica, transbordando na visão contemplativa.
Através deste meio, antigo, porém sempre novo, o servo descobre o sentido pleno de sua vocação batismal e comunica aos povos as alegrias do seguimento de Jesus Mestre, pois tem como missão o cumprimento único da Vontade Divina.


  1. LEITURA ORANTE

A Igreja Militante, que caminha para a Morada Eterna, é peregrina, anunciadora da Salvação e construtora do Reino de Deus. Nela se encontra e encerra a plenitude da Verdade.
Assim, desejosa de anunciar até aos confins do mundo a Palavra, empenha-se vertiginosamente para que todos a conheçam, e proclama, juntamente com São João: “anunciamo-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu: anunciamo-vos o que vimos e ouvimos, para que também vós vivais em comunhão conosco, e a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1 Jo. 1, 2-3).
Unida ao firme compromisso de produzir frutos, a alma fiel encontra nas Escrituras todos os meios para se unir verdadeiramente ao Amado que chama sem cessar. Cresce continuamente em oração, ao ponto de deixar somente Jesus viver em sua alma e exclamar: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal. 2, 20).
Deste modo, a Leitura Orante, compreendida hoje em quatro passos, oferece o caminho para que se chegue à união contemplativa de Deus, compreendendo os fatos históricos e atualizando-os, levando a alma ao estado de meditação e, consequentemente, de oração decidida e fervorosa.
A Lectio Divina tem seu início com a própria Igreja, pois tem sua origem no Verbo encarnado. É a fonte de toda a espiritualidade e, com o auxílio da graça divina, é a ponte para vida unitiva.
 Desde os primórdios da Igreja e, posteriormente com a sistematização dos Escritos, as Sagradas Escrituras sempre foram o fundamento da vida religiosa. Por volta do ano de 1150, o monge cartuxo Guigo registra o método que se tornaria a espinha dorsal da meditação das Escrituras. Compenetrado com sua reflexão, registra os quatro “degraus” da Leitura Orante, dividida em leitura, meditação, oração e contemplação. Eis a escada espiritual que sobe ao céu!
Após o Concílio Vaticano II houve um “reavivamento” da prática da meditação da Palavra de Deus, dando-se realce à Lectio Divina, pois se sabe bem da suma importância para a Igreja, para as missões – apostólicas e cotidianas – assim como meio para não se afastar da Fonte da graças.
A Constituição Dogmática “Dei Verbum” proclama a necessidade de “debruçar-se” sobre as Escrituras e declara:

“Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem; porque ‘a Ele falamos, quando rezamos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos’.[3]

Assim, a Leitura Orante é o momento forte do confronto entre a vontade de Deus e as próprias aspirações. É nela que se compreendem os dizeres de São Tiago: “Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Aquele, porém, que se debruça sobre a Lei da liberdade, agora levada à perfeição, e nela persevera, não como um ouvinte distraído, mas praticando o que ela ordena, esse será feliz naquilo que faz” (Tg 1, 22-25).


  1. PASSOS DA LEITURA ORANTE E A VIDA ESPIRITUAL

“Mas a minha vida com Jesus somente se desenvolverá, na medida em que Ele for a luz da minha razão e dos meus atos, o amor que rege os afetos do meu coração, a minha força nas provações e nas lutas, o alimento sobrenatural, que me torna participante na própria vida de Deus.
Ora, sem meditação, esta vida com Jesus é moralmente impossível. A meditação reveste-me de uma armadura invulnerável.”[4]

A Lectio Divina é um eficaz meio de fortalecer a vida interior, revigorar a guarda do coração e desejar verdadeiramente a santidade. A alma que busca usufruir da graça santificante que brota deste método, em primeiro momento exclama: Vejo uma fonte, mas ela brota num rochedo escarpado... Tenho sede. Quanto mais contemplo essa água límpida, que me permitirá prosseguir o caminho, mais sede tenho. Quero, a todo o custo, chegar a essa fonte e esforçar-me por atingi-la. Mas reconheço a minha fraqueza. Quero convosco. Aparece um guia. Quer ajudar-me, e só espera o meu pedido. Conduz-me pelas passagens mais difíceis e, em breve, consigo saciar a minha sede, nas águas vivas da graça, que brotam do coração de Jesus.[5]
São Francisco de Sales deixa a preciosa lição de que foi o Espírito Santo que nos deu a Escritura e é o mesmo Espírito que nos dá seu verdadeiro sentido.[6] Deste modo, a invocação da condução do Espírito Santo faz a alma descansar em verdes prados e concede a sabedoria para o entendimento de sua Vontade.
Assim, para saciar-se nas riquezas do Salvador é preciso, como o próprio Cristo, retirar-se, se posicionar em silêncio, deixar o coração comunicar-se com o Pai. No silêncio meditar.
Vejo: Empolgado pela presença viva de Jesus e, assim desembaraçado das distrações naturais, começa-se a leitura, unida à linguagem da fé. Com este objetivo lê-se, cuidadosamente, o texto a meditar; atento às palavras, compenetrado em compreender os seus significados, expressões e frases. Destaca-se o significado do texto em si, juntamente com a análise do contexto histórico, a realidade do escritor e os motivos do texto ser registrado. Tenta-se descobrir as divisões e a articulação do pensamento dentro do texto, estando atento aos seus detalhes. É o primeiro passo para avançar nos degraus espirituais: a leitura.
É Jesus que fala e ensina esta verdade. Portanto, após a leitura e já iniciando um novo passo, nasce o desejo de aumentar a fé naquilo que o Mestre ensina.
Na meditação – novo degrau a subir – atualiza-se o sentido da palavra lida, contextualizando-a com a realidade em que se vive, tanto pessoal como social. É uma perene luz que ilumina os acontecimentos.
É o momento de dialogar com o texto e consigo próprio, refletir o que se leu e descobrir que “a Palavra de Deus está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a ponhas em prática” (Dt 30, 14).
Neste ponto destaca-se o questionamento sobre o que o texto diz para mim, assimilando e encarnando a Palavra, relacionando-a com a vida. É um passo alargador da visão, pois leva à reflexão e o consequente engajamento com a mudança dos hábitos, o abandono dos vícios e a renúncia das fraquezas.
É um inquérito sob o olhar misericordioso de Deus, que auxilia a descobrir os obstáculos que impendem de imitá-lo, as causas externas e internas de tantas faltas. Portanto, ao considerá-las, avança-se por entre atos de humildade e dor profunda, no desejo de ser melhor e na resolução de nada recusar a Deus.
“Quando você faz a Leitura Orante, o objetivo último não é interpretar a Bíblia, mas interpretar a vida. Não é conhecer o conteúdo do Livro Sagrado, mas, ajudado pela Palavra escrita, descobrir, assumir e celebrar a Palavra viva que Deus fala hoje na sua vida, na nossa vida, na vida do povo, na realidade do mundo em que vivemos (Sl 95, 7); é crescer na fé e, como o profeta Elias, experimentar, cada vez mais, que ‘Vivo é o Senhor, em cuja presença estou!’ (1Rs 17, 1; 16, 15)”.[7]


Tenho sede: a meditação aumenta o desejo de a alma unir-se com Jesus, cuja Água que jorra de seu Coração aberto consola os anseios da alma amante. Faz surgir, com a reflexão, afetos, como alegria, amor, esperança, abandono, temor e a aversão às inclinações terrenas.
Nutrindo o desejo de união íntima com Deus, a alma avança um novo degrau, elevando ao Pai sua oração. É o momento em que o texto me faz dizer algo à Deus, estabelecer diálogo com Aquele que, através do Verbo, diz: “Qualquer coisa, que pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai que está nos céus” (Mt 18, 19).
Vivificando a meditação, a oração é o compromisso com os sentimentos que brotaram no coração. É um esforço para sacudir o torpor e fazer-lhe dizer: Meu Deus, quero unir-me a Vós. Quero aniquilar-me perante Vós. Quero cantar a minha gratidão e a minha alegria para cumprir a vossa vontade. Nunca mais quero mentir, quando digo que vos amo, ou detesto tudo o que vos ofende.[8]
A reflexão fez nascer o desejo da correção e, na oração, é elevado o anseio ao Deus consolador. Faz forjar no coração um amor mais vivo e o compromisso com a resolução assumida. Ademais, reza-se a Jesus, por meio de Maria.
Quero convosco: Todos os passos da Leitura Orante culminam no cumprimento da Vontade de Cristo Jesus, em deixar-lhe viver unicamente na vida da alma amante.
Na contemplação, último degrau, o olhar humano é suplantado pelo olhar de Deus, que clareia a realidade com a fé viva. É ver o mundo e a realidade com o olhar de Deus. Participar do projeto e da vida do próprio Cristo.
Assim como os Santos, é estar revestido pelo desejo de ser inflamado pelo Amor divino de Deus Pai. Não buscando ser servido, mas servir; despojar-se inteiramente da vontade própria e ser revestido pelas graças e virtudes de Cristo, cuja vida inunda o espírito daquele que entrega-se incondicionalmente aos cuidados de tão bondoso Pastor.
É um olhar que leva a viver melhor o compromisso assumido; tomando a cruz, seguir alegre e confiante as pegadas de Cristo, sendo perfeitos discípulos-missionários. É exclamar: “Faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1, 38).


  1. ELEMENTO INDISPENSÁVEL PARA O APOSTOLADO


O sentido da Leitura Orante resume-se no firme compromisso de tornarmo-nos pessoas melhores, devotos, piedosos e atentos às necessidades dos pequeninos. É alcançar o cume da vida espiritual, em união feliz com Deus.
Todos os princípios metódicos dos passos são verdadeiros degraus, pois constituem etapas imprescindíveis, nas quais é possível compreender a verdade histórica e o contexto social – passado e atual – se elevando uma súplica humilde e sendo possível revestir-se da força de Cristo.
Com a prática incansável da Lectio Divina, os dias tornar-se-ão agradáveis, mesmos com as dificuldades e tentações, pois sei que o “tudo posso” se apóia “n’Aquele que me fortalece” (Fil 4, 13). No decorrer do tempo irei caminhando alegre e humildemente nas estradas reais do Rei Salvador, levando comigo as Escrituras, tornando sua leitura e meditação em grato exercício. Tomá-la-ei para recordar as minhas resoluções, quando surja a tentação, obstáculo, ou sacrifício; e suplicarei, então, com ardor filial.


[1] DEI VERBUM. 3. Preparação da revelação evangélica.
[2] DEI VERBUM. 6. Necessidade da revelção.
[3] DEI VERBUM. 25. Leiruta da Sagrada Escritura.
[4] CHAUTARD, Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. Porto: Companhia Editora do Minho, 2001. p. 132
[5] CHAUTARD, Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. Porto: Companhia Editora do Minho, 2001. p. 134
[6] KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 32
[7] CNBB. Leitura Orante nos Senimários e Casas de Formação. Brasília: Edições CNBB, 2010. p. 31
[8] CHAUTARD, Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. Porto: Companhia Editora do Minho, 2001. p. 136

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